Memória e esquecimento
“Todo mundo precisa de suas lembranças.”
(Saul Bellow, OPlaneta do Senhor Sammler)
Somos feitos, simultaneamente, de memória e esquecimento. A memória nos conserva a identidade e a continuidade histórica, mas é o esquecimento que nos permite sobreviver, impedindo que nossa identidade naufrague na infinitude das lembranças. A memória permite ser, o esquecimento possibilita continuar a ser. Lembrar e esquecer são atividades complementares do cérebro, essenciais à vida e à saúde humanas.
Se nos fosse concedido lembrar tudo, o tempo todo, nosso cérebro não aguentaria tanta informação. Como lembra Érico Veríssimo em “Olhai os lírios do campo”: “O mundo seria insuportável, se as pessoas tivessem boa memória”. Essa é a desgraça e a tristeza do personagem do conto de Jorge Luís Borges, intitulado “Funes, o memorioso”: ter uma memória prodigiosa e não conseguir se esquecer de nada. “Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo”, lamenta. Sua infelicidade é lembrar-se de tudo, nos mínimos detalhes, sem interrupção nem descanso, o que torna sua vida um pesado fardo, que lhe traz insuportável sofrimento. No poema Elogio do Esquecimento, Bertolt Brecht confirma a importância do esquecimento para a sobrevivência do ser humano: “A fraqueza da memória / Dá força ao homem”, e acrescenta: “Bom é o esquecimento! / Senão como se afastaria o filho, / Da mãe que o amamentou?”
Por outro lado, se fôssemos programados para esquecer cada acontecimento no instante seguinte, se tudo que passasse pela nossa memória fosse imediatamente esquecido, a vida humana se tornaria inviável, porque não teríamos história e, por consequência, não teríamos identidade. Não haveria um “eu”! Não teríamos o que, na linguagem atual, chamamos de a nossa linha do tempo. Seríamos seres ainda mais frágeis e indefesos do que somos, porque não acumularíamos experiência. É o que ocorre com pessoas que sofrem algum trauma cerebral e são acometidas de amnésia temporária. Ou com idosos senis ou portadores do mal de Alzheimer, que perdem completamente sua identidade e não reconhecem nem mesmo os parentes próximos.
No passado, especialmente nos tempos em que predominava a oralidade sobre a escrita, a boa memória era condição de sobrevivência, ela garantia a permanência da história, das tradições e dos costumes. Depois, veio a escrita e com ela o ser humano dividiu a tarefa de lembrar entre sua capacidade de memorização e o registro escrito. Na época atual o ser humano, assoberbado com a avalanche de informações que o circundam, cada vez mais tem confiado às máquinas a memória dos fatos, desestimulando o trabalho do cérebro.
Não sabemos como arelação entre memória e esquecimento evoluirá no futuro humano. A informática ea mais recente inteligência artificial parecem apontar para um uso cada vezmaior da memória artificial em detrimento da memória humana. Isso,provavelmente, afetará a capacidade humana de memorização de dados objetivos.Mas jamais prejudicará a memória que mais interessa ao ser humano, que é amemória subjetiva da experiência de cada um ao longo de sua vida. Essa memória,condição de nossa humanidade, nenhuma máquina substituirá!
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